O perfume da discórdia
Por Luciano Martins Costa
Uma campanha publicitária da rede de lojas o boticário para o dia
dos namorados causa enorme repercussão nas redes sociais há dez dias e ganha
espaço nos principais jornais do país na quarta-feira (3/6). O filme “casais”
já teve mais de 1,15 milhão de visualizações no canal youtube e gerou mais de
40 mil citações espontâneas no twitter, o que significa que a mensagem ganhou
vida própria e passou a transcender o conteúdo publicitário original.
É bastante possível que a propaganda venha a impulsionar as vendas
de cosméticos e perfumes da maior empresa varejista do setor, mas o mais
interessante aqui é analisar as causas e
efeitos da grande polêmica que tem produzido.
Uma das primeiras reações registradas nas redes sociais foi a
tentativa de boicote de representantes de igrejas denominadas neopentecostais,
mas uma onda de defensores do anúncio praticamente abafou a reação dos
conservadores. A peça de propaganda, exibida em larga escala, inclusive nos
horários de maior audiência da televisão, mostra casais heterossexuais e
supostamente homossexuais se presenteando com produtos de o boticário e se
abraçando carinhosamente.
Segundo os jornais, os dirigentes da empresa estavam conscientes
de que a iniciativa poderia provocar reações contrárias, levando-se em conta a
onda de conservadorismo que tem caracterizado recentemente as relações sociais
no brasil.
Desde a campanha eleitoral de 2010, quando a mídia deu grande
destaque a manifestações de líderes de seitas religiosas discutindo propostas
como a da descriminalização do aborto e a oficialização do casamento entre
pessoas do mesmo sexo, a onda conservadora tem sido amplificada e manipulada
por órgãos da imprensa. Essas escolhas da mídia são utilizadas como instrumento
político de pressão contra o governo federal, bem como contra personalidades e
intelectuais que defendem publicamente certas bandeiras progressistas.
Inserida nesse contexto como uma cunha, a campanha de o boticário
obriga milhões de pessoas a tomarem uma posição pública e clara sobre a questão
da diversidade sexual e mostra que o perfil médio do brasileiro é de mais
tolerância do que se imagina quando se observa o barulho de pastores, padres e
outros agentes do obscurantismo.
Arriscando o futuro
A progressão das manifestações nas redes digitais revela que os
indivíduos cuja visão de mundo impele a uma condenação liminar da
homossexualidade se expressam mais rapidamente: até o começo da noite de
terça-feira (2/6), os que condenavam a mensagem publicitária eram a maioria nas
redes digitais.
Natural: a palavra irrefletida sai mais facilmente da boca.
Mas no último registro dos jornais, feito pela folha de s. Paulo no
fechamento da edição de quarta-feira (3), os números de “curtir” e “descurtir”
no youtube mostravam uma virada no jogo, com uma maioria de 211,4 mil clicadas
a favor do anúncio contra 155,7 mil, contra.
Observe-se que a iniciativa de condenar a peça publicitária foi
estimulada por alguns movimentos organizados por lideranças religiosas, que
vinham convocando seus seguidores a assistir ao vídeo e clicar na opção
negativa. Aos poucos, porém, a própria divulgação impulsionada pelos que
condenam a mensagem provocou o engajamento espontâneo da parte do público que
considera legítimo o relacionamento amoroso entre pessoas do mesmo sexo.
O movimento levou a empresa anunciante a mensurar o efeito da
campanha, com uma pesquisa sobre as reações dos consumidores, mas o resultado
só deverá ser conhecido após o balanço das vendas do dia dos namorados.
O episódio traz importantes lições para observadores da cena
social e, ainda mais valiosas, para os analistas dos campos comunicacional e
político. A primeira delas é a constatação de que a fração conservadora da
sociedade brasileira tornou-se mais ativa e barulhenta, mas não representa
necessariamente a maioria. A segunda é que, embora demore mais para se
manifestar, a parcela mais progressista acaba dando a última palavra.
A campanha de o boticário levanta uma outra vertente, esta de
interesse especial para as empresas de comunicação: o risco de se aliar a
grupos de opinião extremamente conservadores.
Engajada numa longa cruzada contra todas as políticas
progressistas, desde a inauguração dos primeiros programas sociais, a mídia
tradicional vem dando espaço e holofotes para o que existe de mais retrógrado
no espectro ideológico, ajudando a tirar do anonimato figuras virulentas que
radicalizam o embate político.
Num primeiro momento, como se vê, tais forças reacionárias fazem
muito barulho, mas no longo prazo predomina a reflexão mais ponderada.
Cada vez mais identificada com o obscurantismo, a imprensa está
comprometendo seu próprio futuro.
Fonte:Jornal GGN
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